Por: Diego El Khouri
A escritora Rosa Kapila fez enfim sua passagem. Abandonou o corpo, roupa emprestada para caminhar nesse mundo louco e, por vezes, perverso. Essa querida amiga, doutora em literatura na USP e com uma quantidade imensa de livros publicados, faleceu no dia 25 de Agosto de 2024 (conseguindo enfim ser enterrada apenas uma semana após sua morte - esses detalhes de um país que não valoriza seus artistas ) numa morte bem estranha e que merecia ser investigada. Não irei fazer nenhuma acusação porque o caso é complexo, mas que mexe muito comigo devido as circunstâncias que ocorreu. Mas agora é o momento de registrar sua imensa contribuição nas artes e na educação, professora dedicada que foi até o dia de sua merecida aposentadoria.
Conheci essa combatente literária em 2012, ano que me mudei para o Rio de Janeiro, capital da boemia. Eu já tinha perambulando nessa cidade contraditória em 2010 para conhecer o mano Fabio da Silva Barbosa, editor do zine Reboco Caído e o maluco que criou comigo a lisérgica punk Editora Merda na Mão.
Essa segunda ida a essa cidade foi a convite do poeta músico Edu Planchêz Maçã Silattian. Ele tinha postado no YouTube um vídeo recitando um texto meu chamado "Manifesto em favor da poesia Marginal" (https://youtu.be/6j6KJA2MpVs?si=ZWNTE_WaLYKIi0ZT ) e nessa postagem Edu fazia a convocação: que apareça o autor(!). E durante 1 ano ficamos "nos procurando" (eu tinha visto o vídeo, mas não sabia quem era o edu e vice e versa). Cheguei em 2012 no Rio, doente, fudido, alucinado, quase fui assassinado em São Paulo durante a viagem (em breve vou escrever com detalhes essa saga louca que vivi)... Mas fui muito bem acolhido por esses queridos irmãos de ofício. Eles contribuíram pra que eu saísse do inferno mental e físico que naquele período tão pesado da minha existência estava soterrado! Rosa é ex esposa do Edu e mãe de seu filho, o Ícaro Odin.
A última vez que vi a Rosa foi em um sarau no ano de 2014 organizado pelo ator Paulo Beti e pelo jornalista Paulo Maia no teatro da Gávea. Nesse dia meus quadros fizeram parte do cenário do palco e muita gente foda se apresentou nessa noite: Jards Macalé (no qual fumei um baseado com ele), Ava Rocha, a banda Blake Rimbaud (que tem o Edu como cantor, compositor e idealizador) , a Rosa Kapila, entre outros.
Ela deixa um legado importante. Recomendo que procurem sua vasta obra literária nas livrarias, sebos e internet.
Abaixo deixo alguns de seus poemas:
SE FECHO OS OLHOS FICA DE NOITE
Olho a chuva de minha janela do quarto.
Um lençol de nuvens escuras cobre o Cristo Redentor
Como a chuva é linda.
Se não fossem as velhas fadigas...
Eu quero a boca do paraíso.
Vi um bicho pulando com seu terceiro pé
/depois, ele salta em cima de vidro pisado
Sempre fui iludida pelos mitos.
Sofri.
As línguas dos mares me deixam esbodegada
Avanço... arrastando-me
O bicho voa.
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VULTO DO CREPÚSCULO
Canto para um vulto do crepúsculo
/ e penso que você me ouve
Tenho nas mãos suaves contas
/ com as quais vou fazendo um colar
Do outro lado de mim uma latinha com uvas pretas.
O coração, parece que está no lugar... pelejando
Estou sentada na areia de uma praia
/ ondas frenéticas tentam me banhar.
Como a noite vem caindo, cavo um buraco
/ na terra e coloco os caroços das uvas.
Minha boca areada olha para o céu.
Os grãos de areia que permanecem em meu corpo
/ seguem comigo pela Vieira Souto.
Ao longe eu o vejo, é ele o vulto do crepúsculo.
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NO DIA EM QUE EU ECLIPSAR-ME
“Dou o nome de violência a uma audácia
em repouso apaixonada pelo perigo.”
( Jean Genet. In: Diário de um ladrão )
No dia em que eu eclipsar-me
Minha faca vai: cortar o fogo.
Virarei uma víbora com dentes iguais
/aos da onça que fuma em meu sonho.
No dia em que eu eclipsar-me
/vou dar portada na cara.
De sangue no olho
/vou queimar essa civilização de papel.
No dia em que eu eclipsar-me
/vou cortar teu couro tão bem cortado
/que nem Deus vai conseguir costurar.
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EU SOU UMA NAVALHA E CORTO MEUS AMORES
“Contemple a sua amante - Pedra!”
( Hart Crane. In poema: Medusa. )
EU SOU UMA NAVALHA
E CORTO MEUS AMORES
EM MINHA AUTO-APRECIAÇÃO INGÊNUA.
PRECISO DE UM PEIXE-VELA
PARA SUBSTITUIR TODAS AS LUZES
OU UM VAGA-LUME
A MAIS SIMPLES DE TODAS
AS LÂMPADAS NATURAIS
TUDO POR UMA LUZ
TORNAR A NOITE TOLERÁVEL!
SALTO DO PENSAMENTO
TRAÍDOS SOMOS
ENQUANTO DORMIMOS
SÃO AS AÇÕES DAS TREVAS
SOU HABITANTE DE UM ELEMENTO
ESTRANHO
FILHA DE UMA ESCOLA NOTURNA
COMO SERÁ QUE FOI A VIDA NOTURNA
ANTES DA ELETRICIDADE?
PULEI PRA NOITE
QUANDO AS HORAS DO DIA
FORAM FICANDO CONGESTIONADAS
PARA MEU BEL PRAZER
PASSEI A VIDA INTEIRA
CONQUISTANDO A NOITE
MUNDO SEM SOL
QUE ME VENHAM TODAS AS VELAS
GOTEJANTES!
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( POEMA DE ROSA KAPILA )
Taiguete no caminho dos hibiscos
O cheiro fica pra mim mesma
O libreto molhado para Taiguete de tranças
Duas bruxas perigando voar.
Exauridas.
Quanto mais insuportável
Mais cedo o poema vai saindo.
Cisco no olho no caminho da floresta
/ e fantasmas nos arruínam em gritos aloprados.
Medo no turbante que veio de Angola.
Parecem palmas à distância
/ ou uma ceia com rabanadas.
Pássaros enchem a barriga
Os jacarés vomitam uma gosma verde.
As folhas são lindas e nos ouvem
Temos pratos, panelas e um cão amigo
/ porém sinto cheiro de bife.
O viajar do olho: floresta dos hibiscos
Taiguete corre e começa a cavar
/ arranca seus livros enterrados
As vestes dos livros estão imperecíveis.
A amiga teria aprontado alguma feitiçaria?
Penso em ciclopes
O mar habitando a poucos quilômetros
/ fogueiras, o bife na salmoura, princesas, mamão
/papaia, trevas, algum abutre pulando em minha lombar
Os hibiscos estão abertos, cheirosos.
Os livros, fechados e amarrados.
Mais poemas no blog: http://rosakapilaescritora.blogspot.com/
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Livro que ganhei da Rosa Kapila em 12 de Agosto de 2012:
Rosa Kapila, contista piauiense, é autora de 13 livros de ficção - Primeiro manuscrito das tentações, Pulso de lamê, Papik o menino que nasceu na neve, Quando mamãe souber, O agito dos amores dentre outros. Premiada pelo MEC/Unesco com o livro Felizes são os gatos. Doutorou-se em Literatura Brasileira (com tese em Mário de Andrade) pela Unesp de Rio Preto. Professora Universitária aposentada.
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